Os rituais: sabedoria ancestral e recurso impulsor de relações com os outros e com a natureza – Rituais e sons de tambores na arteterapia
Fragmento de dibujo de Tomás Rouzer
Articulo 1. Os rituais: sabedoria ancestral e recurso impulsor de relações com os outros e com a natureza
Parece que uma das preocupações maiores do fim do século passado foi a preservação da natureza. Segundo Vidal (1994), têm surgido muitos ambientalistas dispostos a voltar os olhos com nostalgia para períodos passados, em busca de um equilíbrio mais justo. Atualmente, quando se faz referência à natureza, pensa-se em recursos naturais, preservação do meio ambiente, ecologia.
O presente trabalho pretende abordar determinados conceitos sobre a compreensão da relação entre as pessoas e o meio ambiente, como aqueles que foram e são usados nas sociedades milenares, neste caso, as nativas (indígenas), assim como os princípios filosóficos da Gestalt Terapia, que dizem respeito ao homem na sua relação com o mundo, incluindo as bases da filosofia dialógica de Martim Buber, em que são trabalhadas, minuciosamente, a relação do homem com o outro e com a natureza.
A abordagem gestáltica concebe a integração do homem com sua totalidade (cognitiva, sensório-motora, emocional, energética). Seu objetivo é restaurar a qualidade de contato com o mundo, e com a pessoa do outro, na sua singularidade. Esse contato apóia-se no vivido, na experiência de primeira mão, no aqui e agora. (Juliano, 1999, p.25)
A Gestalt concebe o homem como ser no mundo, como ser em relação, numa dialética na qual ele cria o mundo e é criado por este. O homem é, pois, agente das próprias transformações em sua vida, sendo necessário ¨tornar-se presente¨ para este próprio processo. Isto é procurar perceber sua realidade, sua problemática tal como é vivida e experienciada por ele. Estas formas de ser no mundo e de perceber a realidade se sustentam nas bases filosóficas da fenomenologia e do existencialismo.
Vignoli pontua que o terapeuta, quando trabalha na perspectiva fenomenológica, procura ter a atitude a ela correspondente, isto é, de abertura a uma percepção pré-conceitual, pré-teórica e pré-reflexiva do que acontece no encontro das duas consciências (terapeuta e cliente), o que é chamado por Husserl de “retorno às coisas mesmas”. Esta abertura perceptual se alterna naturalmente com os momentos em que a reflexão volta a acontecer, mas o que importa é a atitude básica que fica como um ¨fundo¨a essa alternância. (Vignoli, 2000, p.4)
Na maioria das sociedades ditas primitivas, bem como entre profissionais de diversas áreas, vem sendo resgatada uma visão mais unificada do mundo. Praticas oriundas da visão do homem no mundo da cultura indígena podem ser consideradas alternativas a mais nos trabalhos terapêuticos, pois, basearem-se numa uma forma mais simples de estar com as pessoas e a natureza, permitem um contato com a sabedoria ancestral de um país. Sem idealizar a cultura indígena, a autora não quer negar o outro lado dessas sociedades, que realizaram guerras e competições como outras sociedades existentes, mas sim resgatar aquilo que é saudável e natural na sua forma de relacionar-se com a vida.
O uso de dados culturais, instrumentos e rituais de tais povos enriquece nosso diálogo com eles e possibilita uma troca saudável entre culturas. Nesta proposta, considera-se que pode haver um grande aprendizado no contato com esses grupos, que vivem de forma mais plena a relação com a natureza.
O conceito de natureza, sendo uma construção cultural, é específico para cada sociedade. No caso das sociedades indígenas, que existem também no Brasil, há uma relação bastante íntima com a natureza. Elas preservam o meio circundante e vivem em estreita relação com o mundo animal e o vegetal.
Na visão de mundo das sociedades indígenas, o cosmos inclui tanto a sociedade como a natureza que interagem constantemente. Natureza e sociedade representam uma oposição que se inter-relaciona através de um processo contínuo de reciprocidade através de metáforas e símbolos, mitos e cerimônias, e mesmo comportamentos. (…) Cada sociedade possui uma certa criatividade cultural explicitada na forma como esta socializa a natureza. Analogias e metáforas no discurso cotidiano, mítico e ritual das sociedades indígenas reforçam o sentimento de que homens e animais participam da construção do cosmos. Existe sim a convicção de que homens e natureza estão inseridos em um só mundo. Tanto o mundo das plantas como o dos animais estão carregados, assim, de sentido simbólico, aproximando-os da sociedade humana, sejam as relações assim estabelecidas atrativas ou repulsivas. (Vidal, 1994, p.145)
O homem chamado “primitivo” quando vive sua vida no grupo a que pertence, encontra-se estreitamente vinculado à terra e às raízes de sua raça e costumes. Sua consciência da vida não conhece o limite do tempo e do espaço: o princípio vital (a alma) do indivíduo se identifica e multiplica como os dos animais, plantas, estrelas, sons, fragrâncias, sol, como tudo aquilo que vive, numa relação contínua e recíproca. Ele não se destaca no mundo, mas pertence a ele como a célula de um órgão pertence a um organismo complexo. (Castiglioni, 1971, p.29)
A teoria holística descreve a pertinência de modo semelhante, tomando por base que “toda a natureza é um todo coerente e unificado; os elementos orgânicos e inorgânicos do universo existem juntos em um processo continuamente mutante de coordenação de atividade. Cada um destes elementos (uma planta, um continente, uma criança, um girassol), é ele próprio um processo coordenado integral inserido no todo mais amplo”. (Latner, 1973, p.6).
A descrição do modo de estar no mundo do homem indígena assemelha-se com o que Buber chamou modo de relação EU-TU (termo da filosofia dialógica, por ele criada). Trata-se de um diálogo genuíno, no sentido do que ocorre entre os homens e entre os homens e o mundo. O ser humano pode assumir duas atitudes primárias que em relação aos outros: EU-TU e EU-ISSO. Uma vida saudável requer a alternância rítmica entre as duas polaridades.
Vignoli faz uma síntese pertinente:
No modo EU-TU, a pessoa relaciona-se com o outro sem intenções, entrega-se à vivência da relação abre-se à alteridade do outro sem querer transformá-lo ou mesmo conhecê-lo racionalmente. Há uma vivência imediata da relação na qual o EU e o TU constituem-se reciprocamente ao travar o “diálogo genuíno”. Nesse momento, pode nascer a palavra de cada um, ou pode acontecer o silêncio da palavra não formulada, mas presente em estado indiferenciado, pré-verbal. Mas esta vivência logo transforma-se na relação EU-ISSO, em que ocorre a objetivação e o distanciamento do Eu em relação ao parceiro, que passa à condição de ISSO. Nesse momento, o Eu se coisifica e se diferencia, torna-se, também, um ISSO. (Vignoli, 2000, p.6)
Na relação EU-ISSO, transforma-se o parceiro em objeto do conhecimento, do olhar classificador e analítico. Observa-se o outro para controlá-lo. Deixa-se de vê-lo na unicidade que lhe é própria, como um ser autônomo. A relação tem um objetivo especifico. Quando a pessoa se fixa no mundo do ISSO perde de vista sua humanidade, esquece que “Toda relação atual no mundo realiza-se numa permuta de atualidade e latência, todo TU individual deve transformar-se em crisálida do ISSO para que as asas cresçam novamente. Mas, na verdadeira relação a latência não é mais que a pausa da atualidade onde o TU permanece presente.” [1]
Atualmente, a sociedade vive relações onde prevalece com maior força o individualismo. Por diversas razões se acentuam o afastamento e a destruição em relação à natureza e ao natural na vida. Dada esta situação é relevante, segundo os critérios da facilitadora, resgatar alguns elementos do modo de estar no mundo ancestral, mais próximo a uma postura dialógica, reintegrando no espaço terapêutico e na vida atual dos grupos o vínculo e um novo modo de estar entre as pessoas e com a natureza, herança de nossos ancestrais, de forma elementar e simples: reciprocidade, união, cura natural e bem-estar.
O pensamento de Buber fornece uma importante contribuição à idéia de vínculo que se quer desenvolver durante a experiência descrita neste trabalho com as mulheres, principalmente no momento do ritual e do trabalho corporal. Ele diz que:
O pressuposto mais importante para o aparecimento do diálogo genuíno é que cada um deveria olhar seu parceiro como a pessoa que é. Torno-me consciente dele, consciente de que ele é diferente, essencialmente diferente de mim, de uma forma única e definida, que lhe é própria. E aceito aquele a quem vejo assim, de modo que possa em plenitude dirigir o que lhe digo como pessoa que é. (Buber, citado in: Hycner, 1997)
“Em universos sócio-culturais específicos, como aqueles constituídos por cada sociedade indígena no Brasil, os mitos se articulam à vida social, aos rituais, à historia, à filosofia própria do grupo, com categorias de pensamento localmente elaboradas que resultam em maneiras de conceber o homem, o tempo, o espaço, o cosmos” (Lopes da Silva, 1994, p.77). A relação sadia com os mitos pode fazer parte dos elementos do contexto que podem facilitar o resgate do fluxo saudável entre senso de identidade pessoal, por um lado, e vivência de união com a natureza e com os outros homens, por outro.
Nesta proposta de trabalho no Casarão, escolheu-se os rituais como recursos a serem considerados na arteterapia, na saúde e na educação. Não se trata de impor outra cultura, de não reconhecer a cultura própria de uma determinada região, e sim de integrar alguns rituais de nossos ancestrais como algo valioso para o desenvolvimento, tanto do indivíduo como do grupo. Os rituais podem ser tradicionais ou reinventados e adaptados ao grupo de trabalho. Destaca-se a intenção de resgatar, principalmente, os ritos ancestrais da terra nativa, neste caso o Brasil, país integrante da América do Sul, pelo fato de haver a tendência em alguns meios culturais de considerar que rituais, cerimônias e o uso de instrumentos musicais provenientes do Oriente são geralmente mais adequados para fins espirituais e terapêuticos. O contato com as formas ancestrais próprias de uma região permite às pessoas a abertura para uma visão do mundo mais abrangente e integrada, que pode vir a ser uma fonte de uma forma mais saudável e solidária de estar na vida, que a elas, a seria inerente, mas ¨adormecida¨.
Quando se propõe o uso de rituais mais próximos às raízes culturais dos participantes não se quer dizer que são melhores ou mais vantajosos em relação aos rituais do Oriente. O espírito da proposta quer promover ou valorizar a sabedoria dos rituais próprios de cada região. Segundo Lopes da Silva (1994), eles são produtos e reflexão de um povo sobre sua vida, sua sociedade, sua história, expressam concepções e experiências que se constroem e reconstroem ao longo do tempo “dialogando com as alterações trazidas pelo fluir do tempo, pelo circular em novos espaços, pelo contracenar com novos atores” (Lopes da Silva, 1994, p.76). Há uma tendência de esquecer o que é próprio de nossa cultura, nossa diversidade; a negação das origens ancestrais pode levar a sua extinção, situação que seria penosa pelo aporte valioso que elas representam no que diz respeito ao resgate de uma visão mais saudável da relação do homem com o mundo.
Segundo Lopes da Silva, o ritual permite a experiência e, nela, a transformação e, ainda, a ação. Sai-se dele renovado, em outra condição. A idéia de foco na vivência, na experiência do ritual, está relacionada à prática e teoria da Gestlat-Terapia, que privilegia a vivência mesma da relação em terapia e que vê conscientização e ação como fatores transformadores em si mesmos.
Em muitas sociedades indígenas, o ritual é o momento mesmo da inserção da humanidade no universo mais amplo; é o lugar mesmo da confluência e da presença concomitante do sobrenatural, da natureza e da humanidade. E, por outro lado, da reafirmação dos laços de solidariedade interna, da troca recíproca, da expressão concreta da dimensão econômica dos ritos, através da redistribuição e partilha de alimentos.
É assim que símbolos, sentimentos, concepções e matérias se encontram e se mesclam no universo do mito e da cosmologia, permeando vida e pensamento, sociedade e natureza, dando sentido à experiência humana no mundo. Não como ideologia que aliena, distorce e distancia, mas como consciência do valor das coisas, esquema interpretativo à disposição do sujeito que conhece o mundo e age sobre ele (…) Cosmologias e seus mitos associados são produtos e são meios de reflexão de um povo sobre sua vida, sua sociedade, sua história…constroem-se e reconstroem-se ao longo do tempo. (Lopes da Silva, 1994, p 76)
Aqui se acrescenta que os ritos brindam um Estar Presente consigo e com o outro. O sentido principal do ritual é estar em união com os outros e em conexão com a vida.
Há diversos tipos de rituais no Brasil, mas, pelo curto espaço de tempo da autora no país e o fato de ser peruana, se considerou um ritual procedente do Peru, quando a idéia inicial era trabalhar rituais nativos do Brasil. Foi escolhido para a vivência o ritual Kintu (as três folhas de coca). Deste, apenas uma parte pôde ser realizada pois há momentos, no transcorrer da cerimônia, em que somente um mestre andino pode atuar; por outro lado, em respeito à religião de algumas participantes, sugeriu-se não mastigar a coca ou usar outras folhas simulando ser de coca, caso não desejassem, já que o objetivo principal do ritual é compartilhar e sentir a troca de folhas como um estar no grupo, em reciprocidade.
Pode-se dar uma aproximação geral ao significado do uso das folhas de coca. Achados arqueológicos mostram vestígios do uso das folhas de coca (Erythroxylon Coca) há 2 mil anos A.C. Milhares de andinos elevam ao alto suas folhas de coca, seus pensamentos e sua devoção todos os dias, buscando a reciprocidade com aquela que nos dá o dom da vida, a Mãe Terra Pachamama.
A coca, uma folha de cor verde oliva, às vezes amarga, às vezes doce, para os andinos não é considerada “droga”, no sentido pejorativo de dano e degeneração que conhecemos, pois para eles “droga” é o que o homem produziu com suas próprias mãos para outros fins usando uma dádiva curativa da Mãe Terra. Ouve-se falar da maldição inca, de que quando o homem branco fizesse mal uso da planta sagrada, ela o destruiria, e eis que aí temos a cocaína, alterada quimicamente, destruindo muitas vidas.
Os efeitos medicinais da folha da coca são como de um estimulante, além de melhorar o metabolismo, a oxigenação do sangue, a freqüência respiratória, o mal de altura (mal de puna ou soroche), diarréias, dores de cabeça, anemias, tirar a fome e ajudar em problemas estomacais. A composição da folha de coca contém fósforo, ferro, cálcio, proteínas, carboidratos, vitaminas como a A, B1, B2 e C.
Os Paqos, sacerdotes andinos, usam uma chuspa, uma bolsinha de tecido ou de pele de lhama para carregar as folhas de coca. Fazem adivinhação através das folhas e também oferendas importantes para retribuir à Pachamama o dom da vida e seu sustento que vem da terra. A principal oferenda ritual chama-se k’intu que compreende três folhas de coca (ou seis ou nove, ou mais, múltiplos de três), cada uma representa os três mundos que existem na cosmologia andina. Essas folhas são consagradas com um pequeno sopro ou com o hálito, que significa o sopro de vida que todos temos dentro de nós. Junta-se também as folhas a oferendas que contém tabaco, bebidas, doces, chamadas por alguns de “pagos” ou “despachos”.
As folhas de coca também podem ser usadas para troca, para retribuir serviços, ou como sinal de amizade e partilha. É interessante observar, para quem já teve a oportunidade, as relações inter-pessoais que se estabelecem através do ato de compartilhar a coca. (Menkaiká, 2005)
Analisando a partir destas sociedades, pode-se dizer que o uso dos rituais e o uso dos instrumentos nativos, seus sons (tema que se abordará mais adiante), são propiciadores enquanto recursos de criação coletiva, facilitadores de uma forma mais elementar de estar presente consigo e com o outro, de criar algo em um espaço seguro e aconchegante, coincidente com as bases dialógicas e fenomenológicas da gestalt terapia.
Winnicott (1983), apesar de pertencer à psicanálise, uma linha diferente da gestalt-terapia, apresenta reflexões que estão muito próximas desta ao focalizar, no processo de desenvolvimento psíquico, a qualidade das relações. Ele diz que o homem precisa de um “ambiente suficientemente bom” para que se coloque de uma forma verdadeira e criativa no mundo. É importante, segundo o facilitadora, oferecer um ambiente acolhedor, cooperativo, afetivo, espiritual, sem crítica, para que as pessoas possam se expressar com segurança, ser elas mesmas, individualmente e em comunidade.
Não diremos que rituais e tambores curam, mas consideramos o resgate de conhecimentos e práticas nativas de nossos ancestrais como um recurso valioso, de valor terapêutico e espiritual, pelo fato de contribuir para a harmonização natural da pessoa consigo mesma e com a natureza, e para a melhora da relação com o outro e também com o profissional. Daí a importância de resgatar os rituais ou cerimônias de um país para que se integrem como outros recursos artísticos na arteterapia em grupo. Assim, divulgam-se as tradições de uma cultura, melhor dizendo, re-inventam-se rituais que unam a todos entre si e também com a natureza, dando graças a esta por suas doações à vida.
[1] Buber, Martin. Eu e Tu. 1974. passim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário